sexta-feira, novembro 06, 2009

Uma aula sobre reportagem

Alguns livros caem em nossas mãos por acaso e acabam se revelando verdadeiras escolas, sejam estimulando reflexões ou mostrando situações desconhecidas. Há pouco tempo ganhei o “Grande Livro do Jornalismo”, uma compilação de 55 grandes reportagens, reunidas pelo inglês John E. Lewis. Coincidentemente vinha refletindo sobre a qualidade e a estética das matérias encontradas na grande imprensa brasileira. Lendo os artigos desse livro encontrei uma verdadeira escola sobre o fazer jornalismo, sendo assim selecionei uma das várias matérias interessantes dessa obra que considero de leitura obrigatória a todos. Ela é um pouco grande mas vale a leitura.

“Foram os cristãos”: massacre no acampamento de refugiados de Chatila

ELES ESTAVAM EM TODA PARTE, na rua, nas alamedas, nos quintais e em quartos destruídos, sob alvenaria esmagada e do outro lado dos monturos. Os assassinos, os milicianos cristãos que Israel deixara entrar no acampamento para “fumigar terroristas” 14 horas antes, acabavam de partir. Em alguns casos, o sangue ainda estava no chão. Quando vimos as centenas de cadáveres, paramos de contar.

Mesmo 24 horas após o fim do massacre de palestinos em Chatila, ninguém sabia ao certo quantos haviam sido mortos ali. Em todas as alamedas havia cadáveres — mulheres, meninos, bebês e avôs — caídos juntos em ociosa e terrível profusão onde haviam sido esfaqueados ou metralhados.

Cada corredor no meio dos detritos produzia mais cadáveres. Os pacientes de um hospital palestino simplesmente desapareceram depois que pistoleiros mandaram os médicos embora. Havia sinais de covas coletivas cavadas às pressas. Talvez mil pessoas tenham sido assassinadas ali, talvez metade desse número.

A história completa do que aconteceu em Chatila na noite de sexta-feira e manhã de sábado talvez jamais seja conhecida, pois a maioria das testemunhas ou está morta ou jamais desejaria revelar sua culpa.

O que é inteiramente certo é que, às 18 horas de sexta-feira, caminhões de pistoleiros de uniforme — e emblemas — da Falange Cristã, da direita cristã, e o exército libanês do renegado major Saad Haddad, do sul do Líbano, foram vistos pelos repórteres quando entravam no portão sul do acampamento.

Havia incêndios lá dentro e o barulho de pesado tiroteio, com tropas e blindados israelenses postados em torno do perímetro do acampamento, que não fizeram nenhuma tentativa de impedir que os pistoleiros — seus aliados desde a invasão do Líbano — entrassem.

Um porta voz do Ministério do Exterior israelense diria depois que os milicianos haviam sido mandados a Chatila para caçar alguns dos dois mil “terroristas” palestinos que os israelenses diziam ainda estarem no acampamento.

O que encontramos lá dentro às 10 horas da manhã seguinte transcendia qualquer descrição, embora fosse mais fácil recontar numa obra de ficção ou na fria prosa de um boletim médico.

Os detalhes, porém, devem ser contados, pois, sendo o Líbano, os fatos mudarão nas próximas semanas, quando milicianos, Exército e governos se culparem uns aos outros pelos horrores cometidos contra civis palestinos.

Logo adiante dos portões do sul do acampamento, havia antes várias casas de concreto de um só piso. Quando atravessamos a lamacenta entrada de Chatila, descobrimos que essas construções haviam sido todas dinamitadas até o chão. Havia caixas de balas por toda a rua principal, e nuvens de moscas enxameavam o lixo. Numa alameda à direita, a não mais de 50 metros da entrada, jazia uma pilha de cadáveres.

Dezenas deles, jovens cujos braços e pernas se enredavam na agonia da morte. Todos haviam sido fuzilados à queima-roupa na face esquerda, a bala rasgando em uma linha de carne até a orelha e entrando no crânio. Alguns tinham vívidas feridas roxas que desciam pelo lado esquerdo da garganta. Um fora castrado. Todos tinham os olhos arregalados, e as moscas já tinham começado a se juntar. Os mais novos tinham apenas 12 ou 13 anos.

No outro lado da rua principal, numa trilha que subia um monturo, encontramos os cadáveres de cinco mulheres e várias crianças. As mulheres eram de meia-idade, e os corpos jaziam cobertos por uma pilha de lixo. Uma estava de barriga para cima, o vestido rasgado, aberto, e a cabeça de uma menininha surgindo por trás. A menina tinha cabelos curtos e cacheados, e o olhar carrancudo nos fitava. Estava morta.

Outra criança jazia na rua como uma flor jogada fora, o vestido branco sujo de lama e poeira. Não podia ter mais de 3 anos. A nuca fora explodida por uma bala disparada no cérebro. Uma das mulheres também segurava uma menina pequena junto ao corpo. A bala que atravessara seu seio matara também a bebê.

À direita, via-se o que parecia ser uma pequena barricada de concreto e lama. Mas quando no aproximamos, vimos um cotovelo à superfície. Uma grande pedra revelou ser parte de um torso. Era como se os primeiros cadáveres tivessem sido empurrados a trator para uma alameda lateral, como de fato foram. Um trator — o banco do tratorista vazio — estava parado, culpado, mais adiante na rua.

Além desse parapeito de terra e corpos via-se uma pilha do que poderiam ser sacos diante de um baixo muro de arenito vermelho. Tivemos de cruzar a barricada para alcançá-lo e tentamos com afinco não pisar nos corpos enterrados embaixo.

Abaixo do muro vermelho uma fila de rapazes e meninos jazia prostrada. Haviam sido fuzilados pelas costas contra o muro, numa execução ritual, e jaziam, ao mesmo tempo patéticos e horríveis, onde caíram.

O muro da execução e seu obstáculo de cadáveres lembravam de certa forma alguma coisa vista antes, e só depois compreendemos como era semelhante em tudo às velhas fotos de execuções na Europa ocupada durante a Segunda Guerra Mundial. Havia ali talvez uma dúzia de cadáveres uns embaixo dos outros.

Era sempre o mesmo. Encontrei uma casinha intocada com um portão de metal marrom que levava a um pequeno quintal. Alguma coisa instintiva me fez empurrá-lo e abrir. Os assassinos acabavam de partir. No terreno jazia uma moça. Estava de barriga para cima, como se tomasse banho de sol no calor, e o sangue que escorria de suas costas continuava úmido. Jazia de pés juntos, braços abertos, como se houvesse visto seu salvador no último instante. Tinha o rosto em paz, olhos fechados, quase uma Virgem Maria. Só o pequeno buraco no peito e as manchas espalhadas no quintal falavam de sua morte...

Houvera luta dentro do acampamento. A rua era escorregadia, com caixas de balas e pentes de munição perto da mesquita de Sabra, e parte do equipamento era do tipo soviético usado pelos palestinos.

Estava claro que houvera guerrilheiros ali. No meio daquela parte da rua, porém, jazia — incrivelmente — um modelo perfeitamente entalhado de um fuzil Kalashnikov, o cano partido em dois. Fora um brinquedo...

Do outro lado de Chatila veio a voz incorpórea de um oficial israelense transmitida por meio de um Tannoy de cima de um transporte de pessoal blindado.

- Fiquem fora das ruas — gritava. — Só estamos atrás de terroristas. Fiquem fora das ruas. Nós atiraremos.

Uma hora depois, na galeria Semaan — longe dali —, alguém abriu fogo contra os soldados e eu me joguei numa vala ao lado de um major israelense. Os israelenses dispararam rajadas de balas sobre um prédio arruinado ao lado da rua, fazendo-o em pedaços como confete. O major e eu quedamo-nos amontoados em nossa vala durante 15 minutos. Ele perguntou sobre Chatila e lhe contei tudo que vira.

Então ele disse:

- Vou lhe dizer o seguinte. Os homens de Haddad deviam ter entrado conosco. Tivemos de fuzilar dois deles ontem. Matamos um e ferimos outro. Prendemos mais dois. Estavam fazendo uma coisa má. É só o que vou lhe contar.

Perguntei se foi em Chatila e se ele mesmo tinha estado lá. Ele não diria mais nada.

Então o operador de rádio, que estivera deitado na vala ao nosso lado na lama, se aproximou de mim rastejando. Era um rapaz. Apontou para o próprio peito.

- Nós, israelenses, não fazemos esse tipo de coisa — disse ele. — Foram os cristãos.

P.S. 1: Esse artigo foi redigido por Robert Fisk e publicado originalmento no The Times na data de 20 de setembro de 1982.

P.S. 2: Sobre o artigo: "Depois de Israel invadir o sul do Líbano em junho de 1982, os combatentes da OLP (Organização para a Libertação da Palestina) foram evacuados para a Síria. Muitos refugiados palestinos e não combatentes, entretanto, ficaram para trás nos campos libaneses, os quais passavam pelo controle da milícia cristã local" (John E. Lewis, O Grande Livro do Jornalismo, pág. 317).